14Jul
Introdução

O Senegal, uma das democracias mais elogiadas da África Ocidental, atravessa um momento de viragem política sem precedentes. A vitória de Bassirou Diomaye Faye, em março de 2024, simbolizou não apenas a rejeição das elites tradicionais, mas também a consagração de uma nova geração política encabeçada por ele e por Ousmane Sonko, atual Primeiro-Ministro, mentor político do presidente e principal rosto da oposição que enfrentou o sistema com coragem e sacrifício.

No entanto, pouco mais de um ano após a posse, o cenário que deveria ser de estabilidade e reforma começa a ser ofuscado por divergências internas no mais alto nível do Estado. O que era um projeto político coletivo ameaça transformar-se numa disputa silenciosa, mas profunda, entre dois líderes que, juntos, prometeram refundar o Senegal.

I. Aliança de resistência e promessa de ruptura

O caminho até à presidência foi marcado pela repressão, exílio político e encarceramento. Ousmane Sonko, impedido judicialmente de concorrer à presidência, escolheu como substituto o seu aliado mais próximo e ideologicamente alinhado Bassirou Diomaye Faye que, após sua libertação da prisão, foi eleito presidente com mais de 54% dos votos, ainda no primeiro turno.

A nomeação de Sonko como Primeiro-Ministro, em abril de 2024, parecia consolidar a aliança. Ambos apresentavam-se como representantes legítimos da juventude senegalesa, dos excluídos, dos órfãos do neoliberalismo e das promessas não cumpridas da independência.

O partido PASTEF (Patriotas Africanos do Senegal pela Ética e Fraternidade), fundado por Sonko, tornou-se o pilar do novo governo, com maioria no parlamento e legitimidade social. Mas foi precisamente o peso simbólico e político de Sonko que, mais tarde, se tornaria um elemento de tensão latente.

II. Sinais da fratura: competências, silêncio e divergência

O Senegal é formalmente um regime semipresidencialista, mas na prática conserva traços de um presidencialismo concentrador. Sonko, com uma base popular muito forte e com a responsabilidade de executar o plano de reformas, começou a reivindicar mais autonomia e clareza nas atribuições do Primeiro-Ministro.

Num país onde o Primeiro-Ministro historicamente atua de forma submissa ao Presidente, Sonko rompeu com esse padrão, defendendo abertamente uma redistribuição das responsabilidades executivas e uma verdadeira partilha de poder. Este posicionamento não agradou a todos, inclusive dentro do próprio PASTEF.

O ponto de viragem ocorreu em julho de 2025, quando, durante um discurso perante a Direção Nacional do partido, Sonko fez uma declaração contundente:

Se o Presidente não reage aos ataques sistemáticos contra mim, contra o nosso governo e contra o projeto de ruptura, então que me autorize a agir. Mas não podemos continuar a fingir que está tudo bem.

A frase foi interpretada como um ultimato político. Pela primeira vez, Sonko expôs publicamente o mal-estar interno, exigindo do Presidente Diomaye Faye uma postura mais firme frente às pressões externas, à elite tradicional e ao próprio sistema judicial.

III. O espectro judicial e as batalhas simbólicas

Sonko carrega ainda o peso de condenações judiciais passadas, incluindo um caso controverso de difamação, cuja validade política e jurídica continua a ser debatida no país e no exterior. A anistia que o permitiu assumir o cargo foi parcialmente revogada pelo Parlamento, o que deixou aberta a possibilidade de novas perseguições judiciais.

Essa reviravolta legislativa feita, ironicamente, por uma maioria controlada pelo seu próprio partido alimentou especulações sobre divisões internas, pressões externas (inclusive internacionais) e a possibilidade de Sonko estar sendo isolado politicamente, mas de forma silenciosa.

Para os seus apoiadores, isso representa uma traição às promessas de transparência e justiça. Para os mais pragmáticos, trata-se de um reposicionamento institucional necessário para evitar que o poder executivo fique excessivamente polarizado entre duas lideranças fortes.

IV. Economia em tensão, juventude em dúvida

No plano económico, o governo enfrenta uma herança explosiva. A dívida pública ultrapassa 110% do PIB, e há uma urgência de renegociar contratos com o FMI, além de rever concessões no setor de gás e petróleo. Sonko tem sido um dos mais vocais defensores de uma “revisão nacionalista” dos contratos energéticos, posicionando-se contra o que chama de “acordos leoninos herdados do passado”.

Ao mesmo tempo, a juventude que foi às ruas em 2021, 2023 e 2024 começa a mostrar sinais de frustração. Muitos sentem que a ruptura prometida está a ser abafada por disputas de poder, hesitações estratégicas e, sobretudo, falta de comunicação unificada entre o Presidente e o seu Primeiro-Ministro.

Como bem expressou o ativista Aliou Sané, em entrevista ao El País:

O grande desafio agora é impedir que a esperança se transforme em decepção. O povo votou por uma mudança real, não por jogos de bastidores.

V. A encruzilhada institucional

Internamente, o Presidente Faye mantém-se discreto. Não respondeu publicamente às declarações de Sonko, mas sabe-se que consultas políticas e estratégicas estão em curso. A substituição do Primeiro-Ministro não está descartada, embora represente um risco real de implosão no bloco do PASTEF.

Externamente, o país começa a ser visto com preocupação por investidores e parceiros multilaterais, sobretudo num momento em que o Senegal precisa de estabilidade para atrair financiamento e manter os compromissos com organismos como o FMI e o Banco Mundial.

VI. Caminhos possíveis: ruptura ou maturidade política?

A crise entre Faye e Sonko é, acima de tudo, uma prova de maturidade democrática. Não se trata apenas de um conflito de personalidades, mas da tentativa de redefinir o equilíbrio de poder dentro do Estado senegalês. Se bem gerida, pode transformar-se num momento fundacional. Se mal conduzida, pode destruir o capital político de ambos e mergulhar o Senegal numa nova fase de instabilidade.

Recomendações estratégicas:

Formalizar uma carta de governação entre Presidente e Primeiro-Ministro, definindo claramente as atribuições de cada um, com supervisão parlamentar.

Reforçar a comunicação institucional conjunta, para mostrar ao país que as divergências são naturais, mas a unidade é inegociável.

Retomar o espírito da luta comum: lembrar que a vitória de 2024 foi fruto de uma luta compartilhada e de um povo que acreditou em ambos.

Abrir espaço para diálogo com a sociedade civil, sobretudo com a juventude, para preservar o apoio popular que sustenta o atual regime.

Conclusão

O Senegal encontra-se numa bifurcação histórica. Entre o sonho de ruptura e o risco de fragmentação, está o desafio de manter viva a promessa feita ao povo: refundar o Estado com ética, coragem e justiça. Diomaye Faye e Ousmane Sonko devem, por responsabilidade histórica, encontrar o caminho do consenso, da reconciliação estratégica e da ação coordenada.

A ruptura, para ser verdadeira, precisa de continuidade, unidade e humildade política. Porque, no fim, não é a vitória de um líder que constrói uma nação, mas sim a fidelidade ao povo que a sustenta.