30Jun
1. Introdução: quando a paz não é justiça

No dia 27 de junho de 2025, um acordo foi assinado em Washington entre a República Democrática do Congo e o Rwanda, com a mediação do presidente norte-americano Donald Trump. O tratado visava encerrar os conflitos armados no Leste do Congo, território profundamente ferido por décadas de guerra e pela atuação do grupo rebelde M23, apoiado por Kigali.

À primeira vista, parecia uma solução diplomática. Mas uma análise cuidadosa revela que este não é um tratado de paz no verdadeiro sentido da palavra. É, antes, um contrato político que beneficia os mais fortes e compromete, mais uma vez, a soberania da RDC e a dignidade do seu povo.

2. O conteúdo do acordo e o que está ausente

O texto do acordo estabelece pontos como:

– a retirada das tropas ruandesas em 90 dias;
– a cessação mútua de apoio a grupos armados;
– a criação de um mecanismo conjunto de segurança com observadores internacionais;
– promessas de investimentos ocidentais no setor mineiro;
– a reintegração seletiva de combatentes;
– o retorno dos refugiados com apoio humanitário.

No entanto, o documento não apresenta cláusulas de responsabilização. Não há previsão de sanções para o não cumprimento das obrigações. Nenhum artigo estabelece o que ocorrerá se uma das partes violar os compromissos. Trata-se, portanto, de um acordo sem mecanismos de defesa legal para proteger o povo congolês de novas agressões.

Além disso, o grupo M23, protagonista da violência recente, sequer é mencionado formalmente, o que compromete a credibilidade do texto.

3. O que o Rwanda realmente ganha

O Rwanda sai fortalecido. Ao aceitar o acordo, conquista:

– legitimidade internacional como ator de estabilidade regional;
– acesso continuado aos recursos minerais do Kivu, agora por meio de vias diplomáticas;
– o direito de permanecer presente na RDC através de estruturas de “cooperação em segurança”;
– a reconstrução de sua imagem externa, transformando-se de agressor em parceiro.

A narrativa que se impõe é a de que Kigali está a colaborar. Na prática, legitima-se uma ocupação indireta, um domínio suave e estratégico que dispensa armas, mas mantém o controle.

4. O que os Estados Unidos ganham

Os interesses norte-americanos no acordo são claros. Ao mediar o processo, os Estados Unidos:

– garantem acesso privilegiado aos minerais estratégicos da RDC, especialmente coltan, cobalto e ouro;
– bloqueiam a influência econômica e diplomática da China na região;
– fortalecem a imagem de Donald Trump como mediador de conflitos num ano eleitoral nos EUA;
– favorecem empresas privadas ligadas a círculos políticos, interessadas em contratos de exploração mineral.

O Congo, assim, transforma-se novamente num campo de batalha de interesses estrangeiros, mascarados sob o nome de “ajuda internacional”.

5. E a RDC, o que recebe?

A RDC recebe, em troca, uma promessa de pausa nas hostilidades e apoio técnico e financeiro. No entanto, perde:

– soberania sobre partes do seu território;
– o poder de decidir com autonomia sobre os seus recursos;
– a confiança de milhões de congoleses que esperavam por justiça real.

A assinatura do acordo foi feita longe do Parlamento congolês, sem debate público, sem consulta à sociedade civil, sem participação dos deslocados, das vítimas ou dos sobreviventes da guerra.

6. A repetição de erros históricos

Este acordo repete erros cometidos em acordos anteriores:

– o Acordo de Lusaka, de 1999, falhou por falta de aplicação e responsabilização;
– o Acordo de Pretória, de 2002, previa retirada das tropas ruandesas, mas não impediu novas incursões;
– o Diálogo de Sun City, no mesmo ano, deu lugar à partilha de poder com senhores da guerra, alimentando novos ciclos de violência;
– o Acordo de Luanda, também de 2002, não teve acompanhamento sério por parte da União Africana ou da ONU.

Todos esses acordos falharam pelo mesmo motivo: falta de vontade real de fazer justiça e ausência de mecanismos de proteção do povo congolês.

7. Tshisekedi: proteger o Estado ou proteger o poder?

O presidente Félix Tshisekedi assume neste acordo o papel de um negociador que aceita concessões perigosas para garantir o apoio dos aliados internacionais. A sua decisão pode ser interpretada como pragmática ou como rendição. No momento em que a sua legitimidade interna enfraquece e a contestação cresce, o acordo serve como escudo diplomático.

Trata-se de proteger o Estado congolês ou de proteger o poder presidencial? A história julgará, mas os sinais indicam que o povo foi colocado em segundo plano.

8. Conclusão: o povo ausente da sua própria história

Este acordo não foi feito pelo povo, nem para o povo. Foi assinado entre sistemas, não entre consciências. O sofrimento do Leste, as mortes silenciosas, as aldeias queimadas, as mulheres violentadas e as crianças sem escola não foram levados em conta.

Não se constrói paz verdadeira sem justiça, sem verdade e sem participação popular. Os mesmos que pilharam o Congo voltam agora a propor soluções que lhes garantam acesso aos mesmos recursos.

Enquanto os poderosos escrevem acordos em escritórios climatizados, o povo congolês continua a viver entre o silêncio das armas e o barulho dos interesses estrangeiros.

Citação
As palavras de paz não são sinônimo de justiça quando escritas com tinta estrangeira e sangue local. A verdadeira paz só floresce onde o povo é o autor do seu próprio destino.
— Sempa Sebastião