A palavra “mérito” encanta porque promete ordem e justiça: quem se esforça vence, quem se prepara avança, quem entrega resultados é reconhecido. A promessa é bela. Mas, para ser justa, a meritocracia precisa ser mais do que um slogan. Precisa ser método, precisa ser cultura institucional e precisa estar ancorada em condições reais de igualdade de partida. Caso contrário, transforma-se num mito confortável que legitima privilégios, humilha os que ficam para trás e mantém intocável a arquitetura da desigualdade.
1) O que é, de fato, “mérito”?
Mérito não é virtude moral nem carisma. É desempenho comparável, sob regras claras, num contexto determinado. Depende de três elementos:
1. Condições de partida (saúde, nutrição, escola, tempo para estudar, ambiente seguro).
2. Regras do jogo (critérios transparentes, avaliadores competentes, concursos impessoais).
3. Reconhecimento institucional (promoções, bolsas, nomeações feitas por evidência, não por afinidade).
Quando qualquer um desses pilares falha, o “mérito” perde conteúdo e vira retórica.
2) Breve genealogia crítica
A ideia moderna de meritocracia cresce com a escola pública e os concursos, ganha sofisticação em teorias de justiça que falam em igualdade de oportunidades, e recebe críticas fundamentais da sociologia, que lembra: a família transmite capital cultural, redes e expectativas que moldam o desempenho. O ponto central não é negar o esforço individual, mas reconhecer que o esforço é produzido dentro de ecossistemas sociais. Onde o ecossistema é envenenado por pobreza estrutural, corrupção e clientelismo, o mérito torna-se exceção, não regra.
3) Cinco equívocos comuns sobre a meritocracia
Equívoco 1 -“Quem quer, consegue.” A vontade importa, mas sem nutrição, livros, professores, tempo e segurança, a vontade trabalha contra um muro. Transformar a exceção em regra é intelectualmente desonesto.
Equívoco 2 – “A prova é neutra.” Instrumentos de avaliação podem reproduzir vieses de classe, língua, género e região. Uma métrica cega ao contexto não mede mérito; mede acesso prévio ao contexto certo.
Equívoco 3 – “Políticas de inclusão mexem no mérito.” Quando bem desenhadas, ampliam o conjunto de talentos. Corrigem pontos de partida e fortalecem a competição, porque trazem para o tabuleiro quem estava impedido de jogar.
Equívoco 4 – “Eficiência dispensa justiça.” Organizações que confundem favoritismo com agilidade corroem a própria produtividade: perdem inovação, comprometem moral interna e alimentam mediocridade.
Equívoco 5 – “Redes são mérito.” Ter contactos não é crime; confundi-los com competência é. Redes devem abrir portas para a prova, não substituir a prova.
4) Anatomia das oportunidades: o que pesa antes do “esforço”
Em Angola e em boa parte de África, o código postal pesa. Uma criança num musseque e outra num condomínio fechado não dispõem do mesmo silêncio para estudar, da mesma internet, dos mesmos professores, da mesma expectativa de futuro. A escola, que deveria ser niveladora, muitas vezes reforça a clivagem: manuais inexistentes, turmas superlotadas, docentes exaustos, corrupção miúda que um dia se torna cultura. Some-se a isso o custo oculto da “explicação”, do transporte, do acesso ao hospital, do tempo que se perde em filas e deslocações. Tudo isso é moeda de mérito: o que uns investem no estudo, outros gastam a sobreviver.
5) Política, captura institucional e a retórica do mérito
A política deveria ser o lugar onde o mérito administrativo se prova: concursos públicos com critérios, nomeações por competência, prestação de contas. Quando o Estado é capturado por pequenos clãs, o mérito vira ornamento de discursos. A retórica da eficiência justifica a opacidade, e a opacidade, por sua vez, multiplica o favoritismo. O resultado é conhecido: serviços públicos frágeis, frustração social e fuga de cérebros. A juventude olha e conclui: “vencer depende de padrinhos, não de provas”. Este é o ponto em que a meritocracia deixa de ser ideal regulador e se torna cinismo institucional.
6) O mercado e os novos filtros: tecnologia, algoritmo e ostentação
No setor privado, o problema não é menor. Processos seletivos pouco transparentes, descrições de vagas que pedem “tudo e mais um pouco”, estágios não remunerados, entrevistas que confundem simpatia com competência. Na era digital, algoritmos de triagem podem amplificar vieses: palavras-chave que favorecem quem aprendeu a “falar a língua” certa, currículos filtrados por universidade e bairro. Enquanto isso, a cultura de ostentação reforça a ilusão de que sucesso é sinal de mérito automático, quando, muitas vezes, é mistura de acaso, rede e ponto de partida.
7) O paradoxo do esforço
Os mais desfavorecidos trabalham mais por menos reconhecimento. A jornada é dupla: estudar e sobreviver. Quem detém privilégios, quando se esforça, é alavancado por um colchão de proteção invisível. Por isso, discursos moralistas que culpam o pobre pela sua pobreza são não apenas injustos; são empiricamente pobres.
8) Mérito produtivo x mérito distributivo
É útil distinguir:
Mérito produtivo (quem performa melhor numa tarefa).
Mérito distributivo (quem deve receber quais oportunidades e recursos).
Sociedades maduras maximizam o mérito produtivo dentro de um quadro distributivo justo. Isto exige apostar na base (pré-escolar, saúde primária, nutrição), profissionalizar a avaliação e blindar as instituições contra pressões privadas.
9) Doze medidas concretas para uma meritocracia justa
1. Pré-escolar universal a partir dos 4 anos: investimento onde o retorno cognitivo e social é maior.
2. Metas nacionais de literacia e numeracia com avaliação anual independente e apoio técnico às escolas que ficam para trás.
3. Bolsas integrais com residência estudantil para alunos de baixa renda e de províncias distantes; mérito precisa de cama, mesa e silêncio.
4. Concursos públicos com provas cegas sempre que possível: anonimização de currículos na fase inicial reduz favoritismo.
5. Transparência radical nas nomeações: publicação de critérios, notas, bancas e justificativas.
6. Estágios remunerados por lei na administração e nas empresas que licitam com o Estado.
7. Mentoria estruturada para a primeira geração universitária: acompanhamento técnico, apoio psicológico, orientação de carreira.
8. Reforma de exames e concursos: menos memorização, mais resolução de problemas e casos práticos.
9. Alfabetização digital de base: acesso a internet de qualidade nas escolas públicas e bibliotecas comunitárias.
10. Auditorias salariais e de promoção nas grandes organizações, com metas de diversidade e relatórios públicos.
11. Códigos de conduta anticorrupção com canais seguros de denúncia e proteção real a denunciantes.
12. Pacto de elites: empresários e dirigentes comprometem-se a recrutar por competência, publicar vagas, abrir programas de trainee para periferias e interior.
10) Indicadores de seriedade: como medir o que se proclamaQuem governa e quem gere deve aceitar métricas objetivas:
Percentual de vagas preenchidas por concurso.Tempo médio de processo seletivo e taxa de recursos aceitos.
Taxa de mobilidade social intergeracional (rendimento e escolaridade dos filhos comparados aos pais).
Distribuição territorial de bolsas e oportunidades.
Taxas de aprovação em exames padronizados por escola e por bairro, com apoio focalizado onde há défice.
Sem métricas, o mérito é palavra; com métricas, torna-se política pública.
11) Cultura do mérito: humildade, serviço e bem comum
Uma cultura meritocrática autêntica não exibe carros; exibe resultados coletivos. Não confunde ascensão pessoal com superioridade moral. Reconhece que o talento é uma responsabilidade pública: quem recebeu mais deve devolver mais. Mérito sem serviço degenera em vaidade; mérito com serviço constrói instituições.
12) O lugar da juventude
À juventude cabe uma dupla tarefa: cultivar disciplina intelectual e exigir regras limpas. Estudar, sim; mas também organizar-se, reivindicar transparência, recusar atalhos fáceis, denunciar fraudes sem cair no desespero. A juventude não pode aceitar a mentira confortável de que “tudo é arranjo” nem a mentira simétrica de que “basta querer”. Entre o cinismo e a ingenuidade há um espaço de ação: o trabalho sério que transforma contextos.
Conclusão: mérito como ponte, não como muralha
A meritocracia só é justa quando é ponte entre talento e oportunidade, não muralha que separa privilegiados dos demais. Onde o ponto de partida é desigual, o mérito precisa de correções estruturais para florescer. Onde as regras são opacas, o mérito precisa de luz. Onde a cultura normalizou o favor, o mérito precisa de coragem institucional.
Defender a meritocracia, portanto, não é repetir slogans. É construir precondições, limpar os processos, medir resultados e educar para o serviço. É aceitar que a justiça não nasce dos discursos, mas de métodos. Quando isso acontece, o mérito deixa de ser mito e torna-se motor: organiza a esperança, disciplina a ambição e entrega, ao fim, aquilo que promete — oportunidades reais, para gente real, em sociedades que decidiram levar a sério a palavra “justiça”.