A República Democrática do Congo é hoje palco de mais uma tensão entre o poder atual e o seu antecessor. O ex-presidente Joseph Kabila, que governou por quase duas décadas após a morte do seu pai Laurent-Désiré Kabila, está agora sob forte pressão política. Acusações ligam o seu nome a grupos rebeldes do leste do país, e há propostas no parlamento para lhe retirar a imunidade. Mas essa história, embora nova nos detalhes, é velha na sua essência: em muitos países africanos, o ex-presidente se torna o novo inimigo do Estado.
RDC: uma sucessão cheia de rupturas e feridas
Desde a independência, em 1960, a RDC teve uma trajetória marcada por instabilidade e sucessões traumáticas:
Joseph Kasa-Vubu, o primeiro presidente, foi afastado por Mobutu Sese Seko em um golpe que deu início a uma longa ditadura de mais de 30 anos.
Mobutu foi derrubado por Laurent-Désiré Kabila em 1997, após uma guerra brutal.
Kabila pai foi assassinado em 2001 e seu filho, Joseph Kabila, assumiu num contexto frágil, tentando estabilizar o país.
Em 2019, contra as expectativas, Joseph Kabila entregou o poder pacificamente a Félix Tshisekedi o primeiro caso de transição relativamente pacífica na história da RDC.
No entanto, a aliança FCC-CACH ruiu pouco tempo depois. Tshisekedi distanciou-se do bloco de Kabila, consolidou o seu poder e, desde então, tensões entre os dois lados têm crescido.
Hoje, com novas acusações contra Kabila de envolvimento com grupos armados o país volta a reviver o ciclo do “pós-poder tóxico”.
A perseguição como prática: uma maldição africana
A história da África independente está cheia de exemplos semelhantes:
Laurent Gbagbo (Costa do Marfim) foi preso e levado ao Tribunal Penal Internacional após perder as eleições para Alassane Ouattara.
Blaise Compaoré (Burkina Faso), após anos no poder, foi exilado e condenado à revelia pela morte de Thomas Sankara.
Manuel Zelaya (Honduras, embora fora da África), sofreu um golpe por tentar mudar as regras constitucionais.
Alpha Condé (Guiné-Conacri) foi derrubado por um golpe militar e humilhado publicamente.
Jacob Zuma (África do Sul), acusado de corrupção, foi preso o que, embora dentro da lei, provocou violentos protestos.
Estes exemplos mostram um padrão: muitos líderes temem deixar o poder não porque amam governar, mas porque receiam o que virá depois.
Esse medo é um veneno que mata a alternância democrática e alimenta a tentação do poder vitalício.
E na Europa? O contraste da convivência civilizada
Na França, François Hollande e Nicolas Sarkozy foram duramente criticados inclusive judicialmente mas seguem vivendo em paz no espaço público, dando palestras, escrevendo livros, atuando como estadistas.
Em Portugal, os ex-presidentes participam de eventos públicos e conselhos de Estado, mesmo em divergência política.
A crítica existe, mas a perseguição não se torna norma. Por quê? Porque há cultura de Estado, instituições independentes e maturidade democrática. Em África, infelizmente, ainda impera o espírito de revanche.
Conselho aos líderes africanos: romper o ciclo da vingança
É tempo de abandonar a lógica da destruição do antecessor. Perseguir o ex-presidente pode parecer justiça, mas muitas vezes é apenas um ato político disfarçado de legalidade. E isso destrói o futuro, porque ensina aos que estão no poder a nunca saírem.
Quem governa com transparência não teme a alternância. Quem quer um continente livre, deve também libertar os seus predecessores da prisão política.
Reflexão final
A RDC não pode mais viver à sombra das rivalidades internas. Nem África pode continuar com a cultura de que um ex-presidente deve ser apagado ou exilado.
O verdadeiro estadista não é aquele que destrói o que veio antes, mas aquele que constrói sobre o que foi possível com lucidez, justiça e visão de Estado.